terça-feira, 2 de junho de 2020

Lagoa Santa e catastrofismo

Na gruta de Cerca Grande em Minas Gerais, em uma das primeiras grutas exploradas por Peter Lund, foram encontradas pinturas rupestres. O fato de encontrar a presença humana junto de vestígios de espécies animais extintos da megafauna (como as espécies de taus e preguiça gigantes) fez Peter Lund abandonar a teoria de catastrofismo de Georges Cuvier (embora o próprio Cuvier raramente tenha se referido a “catástrofes” mas a “revoluções”)[1] que explicava a presença de fósseis de animais extintos pela presença de diferentes catástrofes naturais como dilúvios e terremotos[2], e aderir as doutrinas de evolução gradual da terra baseadas em Lyell.[3] Pela teoria do catastrofismo a cada grande cataclismo (e o grande dilúvio narrado no Gênesis seria o último destes eventos) Deus renovava a vida na Terra criando plantas e animais mais evoluídos de modo que os fósseis seriam marcas de formas de vida anteriores que haviam sido extintas em algum destes cataclismos. No final de cada cataclismo haveria a extinção dessa fauna que posteriormente era substituída por outra migrante de uma localidade não atingida pela catástrofe de modo que toda as formas vivas teriam sido criadas por Deus no início do universo tal como descrito no Genesis. A teoria do catastrofismo seria a única forma de compatibilizar a presença de variada fauna e flora terrestre dentro do curto intervalo de seis mil anos presente nas genealogias bíblicas desde Adão. Buffon em seu primeiro volume de Histoire naturelle (1749) e em Époques de la nature (1779) questionou a idade bíblica da Terra, partindo do princípio de que um cometa ao colidir com o Sol poderia ter dado origem à Terra após o arrefecimento do resultado de tal colisão em cerca de 70 mil anos. [4]
A existência de homens e espécies extintas convivendo juntos era considerado uma heresia diante das revelações bíblicas, pois significaria que tal fauna foi criada por Deus antes do homem, ou seja, não poderia ter havido um único momento de criação como descrito no Genesis. Peter Lund tinha a teoria de Cuvier como pressuposto quando iniciou suas pesquisas em Lagoa Santa mas teve de mudar suas convicções pois segundo ele a única forma de explicar a presença de homens convivendo com uma fauna hoje extinta (tais como Megatherium, Megalonix, Scelidotherium, Smilodon da megafauna cenozoica) seria supor que tais ossadas seriam restos de animais que fugiram ao dilúvio universal e que teriam procurado nas grutas um local para se proteger. Posteriormente Lund modificou sua tese alegando que os animais teriam chegado nas grutas pelo transporte de animais predadores.[5] Ao invés de rupturas o trabalho de Lund mostrava que haveria uma continuidade das formas de vida, maior diversidade biológica bem como maior a ocorrência de formas intermediárias. A fauna atual teria, portanto convivido com a fauna extinta pelo último cataclismo. Lund contudo seria bastante cauteloso e inconcludente sobre a convivência da fauna extinta com a fauna atual, embora em 1844 escreva: “na verdade, a massa de documentos que parecem conduzir a uma conclusão contrária a já exposta [catastrofismo de Cuvier] vai aumentando todos os dias, e não poucas das primeiras autoridades da ciência se tem inclinado diante da força irresistível dos fatos”. A hipótese de Lund abandonando a perspectiva catastrofista de Cuvier seria confirmada no livro Origem das Espécies em que Darwin se refere as teses de Lund[6].
[1] FARIA, Frederico Felipe de Almeida. Peter Lund (1801-1880) e o questionamento do catastrofismo. Filosofia e História da Biologia, v. 3, p. 139-156, 2008 http://www.abfhib.org/FHB/FHB-03/FHB-v03-08-Frederico-Felipe-Faria.pdf
[2] MOSLEY, Michael.Uma história da ciência. Rio de Janeiro:Zahar, 2011, p. 115; HETZEL, Bia; MEGREIROS, Silvia. Prehistory of Brazil. Rio de Janeiro:Manati, 2007, p. 39
[3] HOLTEN, Birgitte; STERLL, Michael. P.W.Lund e as grutas com ossos em Lagoa Santa, Belo Horizonte:UFMG, 2011, p.216; LOPES, Reinaldo. 1499 o Brasil antes de Cabral,Rio de Janeiro:Harper Collins, 2017, p. 35; BYNUM, William. Uma breve história da ciência. Porto Alegre:L&PM Pocket, 2018, p. 185
[4] BOORSTIN, Daniel. Os descobridores, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira, 1989, p.411
[5] MENDES, Josué Camargo. Conheça a pré história brasileira, São Paulo: USP, Polígono, 1970, p. 24
[6] HETZEL, Bia; MEGREIROS, Silvia. Prehistory of Brazil. Rio de Janeiro:Manati, 2007, p. 49

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